sábado, 31 de agosto de 2013

Liberdade de escolha?

Marlene Dietrich: “Darling, the legs aren’t so beautiful, I just know what to do with them.”

Um rapaz de Brooklyn, não de Chicago

Uma boa parte das democracias está encalhada no excesso de estado, de governo e de burocracia, na complexidade e custo das tecnologias e infraestruturas globais, no oportunismo corporativo, na corrupção e no populismo. O sinal mais alarmante deste atoleiro é o agravamento imparável e a confluência temporal das dívidas externas, privadas e públicas que o colapso financeiro de 2008 tornou progressivamente evidente num número crescente de países.

Passei as minhas férias lendo dois livros muito oportunos de Nassim Nicholas Taleb: a segunda edição de The Black Swan—The Impact of the Highly Improbable (2010), e Antifragile—Things That Gain from Disorder (2012). Há muito que a temperatura da água na praia de Carcavelos não era tão apetecível para os humanos, mas também para as alforrecas, e não recordo de ter visto tanta gente gorda na praia, de meia idade, jovens, sobretudo raparigas, e miúdos de todas as cores. Fome? Só se for de uma alimentação racional e de exercício físico!

Nestas férias de proximidade, que me permitiram poupar dinheiro precioso que não há, pude confecionar em casa e regalar a família com carne biológica de vitela, porco e borrego conscienciosamente criados na Herdade do Freixo do Meio. Pude melhorar as minhas artes de sushi de atum, peixe espada preto e salmão frescos. E pude ainda, para além de alguns clássicos pessoais, como o arroz malandro de polvo acompanhado por filetes do mesmo, assar monumentais robalos de mar fresquíssimos duramente regateados na Praça da Ribeira. Dominaram francamente as pingas brancas e rosadas da nova região vinícola de Lisboa —Santos Lima e Ermelinda de Freitas— e de Cantanhede —Marquês de Marialva branco 2011.

Mas a grande novidade destas férias, que não foi a exposição de Joana Vasconcelos, ocorreu por acaso quando tropecei numa extraordinária série de televisão disponível na Internet, da autoria de Milton Friedman.

O nome da série original de dez episódios, realizada em 1980, é “Free to Choose”. Existe também disponível na Net uma versão de 1990, com cinco episódios e legendas em português, com o título “Livre para Escolher”. Vi ambas as séries, sobretudo por causa das discussões que encerram cada episódio. Nada do que hoje se discute sobre o buraco em que estamos, ou medidas que têm vindo a ser legisladas pelos sucessivos governos do bloco central desde que Mário Soares, em 1984, mandou criar o famoso Quadro de Excedentes na Função Pública, escapam ao raciocínio sistemático de um dos mais atacados economistas do século 20.

Governo a mais, liberdade e democracia a menos
“Ao pessoal excedentário poderá ser proporcionada a frequência de cursos de formação e aperfeiçoamento profissional, de modo a facilitar a sua colocação. Por outro lado, em determinadas circunstâncias, e beneficiando de incentivos previstos na lei, esse pessoal poderá desligar-se da função pública, contribuindo assim para o respectivo descongestionamento.” (1)
Esta decisão do governo de Mário Soares, em 1984, não sofreu então qualquer contratempo no cenáculo partidário a que chamamos impropriamente Tribunal Constitucional. Daí a improcedência evidente e descarada da mais recente decisão do TC, que Passos Coelho aproveitou (e porventura provocou) para anunciar o esperado a várias vozes segundo resgate. Mas o mais importante é que a necessidade inadiável, pelo menos desde 1984, de emagrecer o estado e os seus inúmeros tentáculos burocráticos e adiposidades corporativas, foi explicada e defendida de modo explícito e fundamentado, pelo menos desde 1963, pelo judeu franzino de Brooklin que um dia seria a face mais visível e polémica da célebre Chicago School of economics.

O Wall Street Journal publicou no dia seguinte à morte de Milton Friedman (2006) um artigo adaptado pelo próprio a partir de um paper em que vinha trabalhando há algum tempo: “Why Money Matters”. Vale a pena conhecer estas duas passagens:
“The third of three episodes in a major natural experiment in monetary policy that started more than 80 years ago is just now coming to an end. The experiment consists in observing the effect on the economy and the stock market of the monetary policies followed during, and after, three very similar periods of rapid economic growth in response to rapid technological change: to wit, the booms of the 1920s in the United States, the 1980s in Japan, and the 1990s in the United States.” [...]

“The results of this natural experiment are clear, at least for major ups and downs: What happens to the quantity of money has a determinative effect on what happens to national income and to stock prices. The results strongly support Anna Schwartz’s and my 1963 conjecture about the role of monetary policy in the Great Contraction. They also support the view that monetary policy deserves much credit for the mildness of the recession that followed the collapse of the U.S. boom in late 2000.”
De ambos os lados do Atlântico, ainda que com retóricas distintas, as respostas dadas, de 2007 para cá, aos colapsos financeiros que se seguiram aos rebentamentos das bolhas de crédito público e privado têm seguido, por um lado, a receita de Milton Friedman sobre a necessidade extraordinária e temporária de aumentar a massa monetária, a fim de impedir uma corrida aos bancos e manter os mercados financeiros a funcionar (Quantitative Easing, nos Estados Unidos, ESM, EFSF e OMT, na Europa, e Abenomics, no Japão). Mas, por outro lado, têm seguido também a receita de John Maynard Keynes no que toca ao endividamento extraordinário dos governos, sob o pretexto de travar o desemprego e estimular o recomeço do crescimento económico. O desemprego, porém, disparou, salvo nas administrações públicas e nos governos.

Em toda a parte os estímulos keynesianos têm vindo a dar resultados positivos decrescentes. Embora tendo permitido aos governos continuar a pagar os vencimentos aos funcionários públicos, as rendas excessivas contratadas com setores económicos protegidos, e os encargos com a segurança social, estes maremotos de liquidez sucessivamente lançados pelos bancos centrais na economia sob a forma de compra maciça (direta ou dissimulada) de títulos de dívida pública estão retidos nos bancos ou são desviados para mais apostas em derivados financeiros e outros veículos especulativos.

Ou seja, republicanos, democratas, socialistas, social-democratas e populistas têm vindo a usar a receita monetarista para segurar o sistema bancário, ao mesmo tempo que encanam a perna à rã no departamento keynesiano, travando os chamados mecanismos de transmissão de liquidez à economia privada — apesar da propaganda sobre o famoso crescimento. Os estímulos chegam apenas a um sítio: ao Estado!

Nem Friedman, nem Keynes são realmente seguidos

Ou se são, a coisa é perversa.

Pelo lado monetarista, impedem-se os bancos de cair. Mas contra as ideias de Friedman o aumento da massa monetária, que deveria ocorrer a título excecional e temporário e servir para desencorajar qualquer corrida aos depósitos bancários, está a ser canalizado para tapar o buraco negro das dívidas soberanas.

Pelo lado keynesiano, a receita foi deturpada para assim continuar a alimentar um estado social que já não consegue recolher impostos suficientes para se manter, mesmo apostando, como tem vindo a apostar, numa criminosa expropriação fiscal dos cidadãos e das empresas —com especiais efeitos mortais nas classes médias e nos pequenos negócios privados.

Created equal? Oh no!

A discussão pública está de pernas para ao ar e viciada pelo populismo burocrático dominante. Valia a pena passar nalgum canal televisivo a famosa série televisiva de Milton Friedman, “Free to Choose”, para que, ao menos, soubéssemos todos o que está realmente em causa no apodrecimento perigoso das democracias dominadas pelo monstro estatal e pelas moles partidárias.

Milton Friedman descurou, na minha opinião, como muitos outros economistas, o problema dos recursos, e sobretudo a questão dos limites naturais das formidáveis formas de energia relativamente baratas a que os seres humanos tiveram acesso ao longo dos últimos duzentos anos. E descurou também os impactos do abandono dos campos e das dimensões e complexidade da urbanização que acompanharam a industrialização e a subsequente dissolução das famílias tradicionais na inflação burocrática das sociedades. Mas a clareza do seu modelo é tal que poucos terão o mesmo valor heurístico para uma discussão aprofundada das causas do declínio da era capitalista. Os três primeiros meses de qualquer curso de economia e finanças deveriam ser dedicados ao conhecimento e discussão exaustiva de Liberdade para Escolher.

Obrigado Santini!

Uma praia de sempre, almoços prolongados em família, coroados com os gelados gloriosos do Santini (que abriu mais uma loja, e sobretudo a sua nova fábrica, em Carcavelos :) e os olhos refastelados na extraordinária série policial dinamarquesa The Killing, uma imperial no Bar dos Gémeos com amendoins salgados ao entardecer, que mais podemos desejar para umas verdadeiras férias de verão?

António Cerveira Pinto


NOTAS
  1. Presidência do Conselho de Ministros
    Decreto-Lei n.º 43/84
    de 3 de Fevereiro
    Referendado em 16 de Janeiro de 1984. - O Primeiro-Ministro, Mário Soares.

2 comentários:

  1. Muito bom!!! Seria talvez importante descrever um pouco mais (fica para o eventual leitor interessado rebuscar) qual o papel de Milton Friedman na evolução das últimas décadas do capitalismo...

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  2. Milton Friedman percebeu algo essencial: a tendência para o crescimento imparável dos governos, das burocracias e da proteção política das populações e dos setores económicos não competitivos (oligopólios, fileiras de exportação, etc.) à custa da sangria fiscal e do endividamento público não é viável. Por um lado, agrava as crises sistémicas do capitalismo, e por outro, apodrece as bases de acumulação de capital (poupança, propriedade privada, investimento produtivo), sem as quais este deixará de funcionar.

    Pergunta então Friedman: que alternativa temos? As vias 'socialistas' (da social-democracia ao comunismo) foram todas exploradas ao longo de mais de um século, e sempre deram maus resultados, sempre menorizaram o ser humano, sempre atrofiaram a criatividade e o humanismo.

    A resposta de Friedman é radical. Mas só sendo radical poderemos todos perceber os argumentos e o que realmente está em jogo.

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